quarta-feira, 27 de maio de 2015

O que é o profissional Museólogo?

Para responder essa pergunta é necessário atentarmos para três documentos-base, que formatam a profissão no Brasil: o primeiro é a Lei n° 7287, de Dezembro de 1984 (desde então, essa data é o Dia do Museólogo), que dispõe sobre a regulamentação da profissão. Essa lei reza que a profissão é de exercício privativo de diplomados, tanto em bacharelado quanto em licenciatura plena em Museologia, bem como a mestres e doutores nesse curso. Diplomados em escolas estrangeiras, desde que seu titulo seja revalidado no Brasil, também podem exercer a profissão. E só com a filiação ao Conselho Regional de Museologia (COREM) o diplomado torna-se de fato Museólogo.
Diversas atribuições do profissional Museólogo aparecem no texto da lei, tais como:  ensinar Museologia em todos os graus e níveis; planejar, organizar e administrar museus; solicitar tombamento de bens culturais; coletar, conservar, preservar e divulgar acervos museológicos; prestar consultoria na área, entre outras.
A lei também regula os COREMs por meio do Conselho Federal de Museologia (COFEM), formado por seis delegados, um de cada Conselho Regional, e o mesmo numero de suplentes.
Já regulamentada a Profissão no Brasil, o Museólogo atua orientado pelo Código de Ética para Museus do ICOM (Conselho Internacional de Museus). Esse código destaca o papel dos museus perante a sociedade. Este prega que os museus devem:  preservar, interpretar e promover o patrimônio cultural e natural da humanidade; manter acervos em beneficio da sociedade e seu desenvolvimento, conservar referências  primárias para construir e aprofundar o conhecimento; criar condições para o conhecimento, compreensão e promoção do patrimônio natural e cultural; funcionar dentro da legalidade, entre outros destaques. Esse código também dita a conduta do profissional dos museus, que deve estar familiarizado com a legislação internacional, seguir as politicas de seu empregador, ser leal aos colegas, manter em sigilo informações confidenciais obtidas no seu trabalho, entre outras. Também regula conflitos de interesse, como não competir, como um colecionador particular, com a instituição a qual está vinculado para adquirir objetos.
Já o Código de Ética Profissional do Museólogo, do COFEM aprofunda as competências do profissional expressas no código do ICOM.
O Museólogo deve atentar para algumas imagens do profissional e alguns perigos inerentes à profissão, segundo indica o Museólogo e professor da UniRio, Mario Chagas: o profissional deve evitar a egolatria, em que se coloca acima de todos os outros na instituição; não deve ser primeiro-mundista, que só considera relevante a produção estrangeira; tampouco tupiniquim-xenófobo, o contrário da imagem anterior. Ele não deve ser um colecionador, excessivamente “apegado” ao patrimônio cultural, como se fosse seu, entre outras recomendações.
Chagas também aponta para os perigos que o profissional pode enfrentar: não colocar o objeto acima de tudo, em detrimento do homem; a mentalidade colecionista, confundindo “disciplinas técnicas” (como filatelia, armaria, etc.) com a abrangência da Museologia. Deve o profissional também atentar para a obsolescência das informações, por todas as mudanças ocorridas no campo nas últimas duas décadas. E é muito importante evitar o enfoque autoritário, que castra a criatividade e iniciativas do corpo profissional da instituição, e isso se reflete nas relações museu-público.
Por fim, uma anedota recorrente entre os museólogos: em caso de incêndio no museu, o bom museólogo se preocupa em salvar o acervo ou os visitantes e colaboradores? Quem responder “acervo” não é um dos melhores...

domingo, 17 de maio de 2015

Os Museus Brasileiros no Século XIX

O Brasil presenciou no Século XIX o surgimento de quatro importantes instituições, que são o Museu Nacional, no Rio de Janeiro; o Museu Paulista, em São Paulo; o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém do Pará; e, por fim, o Pedagogium, também no Rio de Janeiro, sobre os quais farei uma breve apreciação.

O Museu Nacional surge no Rio de Janeiro em 1818, em substituição ao espaço chamado de "Casa dos Pássaros", uma espécie de entreposto que recebia e preparava produtos naturais e adornos indígenas para enviar à Lisboa. Com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, esse serviço não se fez mais necessário. Num primeiro momento, era um museu comemorativo: expunha, sem qualquer classificação, arquivos de coleções e curiosidades. Dois aspectos faziam falta no museu: as conquistas, que propiciavam aquisição de itens, o que impulsionava os museus nacionais europeus, e recursos financeiros. A partir das administrações de Ladislau Netto (1874-93) e de Batista Lacerda (1895-1915), o museu se estrutura nos moldes dos grandes centros europeus. É criada uma revista, Archivos do Museu Nacional, para comunicação e permuta com os museus estrangeiros. As Ciências Naturais, como zoologia, botânica e geologia, predominavam nas páginas da revista. E o regulamento do museu corroborava essa característica: segundo o documento, "o Museu Nacional é destinado ao estudo de história natural, particularmente do Brasil e ao ensino de sciencias physicas e naturaes".
As ciências naturais de fato predominavam nos artigos da revista, e os artigos referentes à Arqueologia eram esparsos e tratavam de vestígios pouco significativos da cultura material. Já os artigos de Antropologia tratavam sobretudo de crâniometria. Para o Museu Nacional, a Arqueologia era um ramo das ciências naturais, tanto que o primeiro curso de Antropologia brasileiro foi oferecido por essa instituição, e esta revelava nele suas concepções sobre a disciplina.

O Museu Paulista surge a princípio como um monumento à Independência e um lugar de exaltação à pujança de São Paulo, à ascenção da nova província no cenário nacional. Esse quadro do museu como monumento histórico, sem uma perspectiva científica bem definida começa a mudar quando o governo paulista contrata o zoólogo Herman Von Ihering. Ele idealizou um museu etnográfico, com o intuito de estudar a história natural da América do Sul e em especial do Brasil. Ihering era um Evolucionista , e essa perspectiva pautava o primeiro número da Revista do Museu Paulista, que era muito centrada na figura do diretor, sua carreira e trânsito internacional.
Também notava-se o predomínio das ciências naturais,com o modelo evolutivo da biologia servindo de base para todos os seres vivos da Terra e em especial para explicar a evolução da humanidade, numa interpretação com base científica e positiva. A produção do Museu Paulista denotava o nascimento de uma Antropologia colada nos parâmetros e modelos das ciências naturais.

O Museu Paraense Emilio Goeldi tem origem na Associação Filantrópica do Pará, que queria transformar a Amazônia, o "paraíso dos naturalistas", sobretudo estrangeiros, num campo fértil para os cientistas brasileiros. Entre 1866 e 1891, o museu passa por vários empecilhos burocráticos, mudanças de controle, passando da Associação para a administração estadual. Mas o museu seguia padecendo das mesmas carências: verbas, objetivos e pessoal capacitado.
Em 1893 o governador Lauro Sodré contrata o zoólogo Emilio E. Goeldi, recém demitido do posto de naturalista do Museu Nacional. Goeldi já entra na instituição organizando as diferentes seções (zoologia, botânica, etnologia, arqueologia, geologia e mineralogia), monta uma biblioteca especializada em ciências naturais e antropologia, além de jardins zoológico e botânico, nas dependências do museu.
No intuito de reproduzir as instituições européias de mesmo modelo, Goeldi traz diversos naturalistas europeus para o Museu Paraense e elabora duas revistas: Boletim do Museu Paraense e Memória do Museu Paraense. Revistas semelhantes às outras publicações citadas, calcadas nas ciências naturais. Mas tinha como base estudos locais produzidos por naturalistas europeus e norte-americanos.
Goeldi valorizava as grandes potencialidades locais, ao mesmo tempo que se queixava do estado material do museu, que julgava ser depositário de curiosidades: "É preciso que o museu cesse de ser uma repartição pública e se torne uma oficina científica". Isso tudo fez com que a importância do Museu Paraense não se desse por uma efetiva produção local, e sim pelo atrelamento à lógica dos centros do exterior e sua produção, que eram o principal conteúdo das suas publicações.

Por fim, o Pedagogium, que foi um museu pedagógico criado no Rio de Janeiro em 1890, por iniciativa de Benjamin Constant, entao Ministro da Instrução Pública, e fechou suas portas em 1919. Concebido para ser um centro irradiador de reformas e qualificação que a educação nacional tanto carecia. Com foco principal no ensino das escolas normais, o Pedagogium coordenava e controlava as atividades pedagógicas no país. Para isso, instituiu a Revista Pedagógica, que era distribuída a professores públicos primários e secundários, imprensa e estabelecimentos de instrução públicos.

A despeito das particularidades de cada instituição, o que unia os museus brasileiros do Século XIX era a sua vocação de ser o espaço para pesquisas e propagação do conhecimento, por meio de cursos, das primeiras faculdades brasileiras, surgidas dentro dessas instituições, das publicações das revistas e seus artigos e, sobretudo, pela atuação dedicada dos diretores do período. Com a chegada do Século XX e o surgimento das Universidades, esse papel pioneiro dos Museus foi gradativamente se esvaziando.

terça-feira, 28 de abril de 2015

III Encontro História, Imagem e Cultura Visual – FABICO/UFRGS

Comentários sobre o Simpósio Temático 02 – Memória, Educação e Patrimônios Visuais

Dentro da temática proposta para o segundo dia dos simpósios temáticos, foram apresentados  06 (seis) trabalhos:
O primeiro, História da Educação e visualidade: as lições de coisas e o Museu de História Natural do Colégio Anchieta/Porto Alegre, RS, de Nara Beatriz Witt (UFRGS), reflete sobre as relações entre a História da Educação e a Museologia. Focando principalmente no Museu de História Natural do Colégio Anchieta, constituído na primeira década do Séc. XX, o trabalho ilustra ricamente a utilização das lições de coisas, a observação de objetos e imagens, denotando a importância do museu como recurso pedagógico.
No trabalho O Museu e a construção da Memória de Julio de Castilhos – a preocupação com a imagem, Ana Celina Figueira da Silva (UFRGS) mostra o meticuloso processo de mitificação iniciado imediatamente após a morte de Castilhos por seus correligionários, usando sem mesuras o aparato do Estado para criar um herói. Fotos, imagens, esculturas e outros trabalhos artísticos fartamente utilizados para “frear” o processo de esquecimento, natural após a morte física.
Já Natalia Thielke (UFRGS), em seu Museu das Missões: narrativas visuais sobre o passado missioneiro, trouxe um belíssimo retrato sobrea expografia do Museu e o próprio projeto arquitetônico, assinados por Lucio Costa, em que é valorizada, com o uso de paredes de vidro, a visão das Reduções Jesuíticas, de dentro do museu. Ele também mostra o quão seletivo pode ser um projeto expográfico, ao retratar quase que exclusivamente os jesuítas e a sua religião, deliberadamente esquecendo os povos nativos e suas tradições.
O trabalho Ir, Ver e se Apropriar, de Priscila Leonel  de Medeiros Pereira (UNESP), tem uma proposta bastante interessante: a visita à “40 museus em 40 semanas”. Isso para que o contato, o acesso físico e simbólico possibilite às pessoas o reconhecimento da Instituição Cultural Museu como patrimônio. Essa necessária comunicação ocorre com a visita de grupos convocados via redes sociais às instituições. Grupos que são guiados por educadores, e após a visita todos são convidados para um café com o intuito de discutir a visita.
A apresentação Colombia en tempos de la Gran Guerra, de Ana Cecilia Escobar Ramirez (UFRGS) mostrou as dificuldades de organizar uma mostra de tal monta, pelo difícil acesso a fontes e material para exposição. A neutralidade colombiana na Guerra e suas implicações na política interna e externa foi uma das muitas questões levantadas na mostra. Os visitantes, confrontados com a realidade desses tempos difíceis que o país passou, saíram com novas indagações propostas, em vez de uma conclusão pronta.
Por fim, Zita Rosane Possamai (UFRGS), em seu trabalho A Educação em Exposição: o Palácio da Educação na Exposição Universal de Paris, 1900 mostra o Palácio, construído especialmente para abrigar a mostra relacionada ao ensino na Exposição. Construído majestosamente, com referências clássicas, bem ao gosto eclético do período, o projeto do arquiteto Louis Sortais tinha o papel de mostrar, dialogando com a exposição que abrigava, os aspectos das conquistas alcançadas por Paris, entre as quais a própria Educação. 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A Cidade Pré-Industrial, de Peter Burke

Apontamentos de que, em minha opinião, é relevante no artigo.


Entre 1450 e 1800, de Gutemberg à imprensa à vapor, na primeira fase da imprensa, as Cidades já eram importantes no processo de comunicação. Ao mesmo tempo, a comunicação foi fundamental para o crescimento e prosperidade de cidades como Veneza, Roma, Amsterdã, Paris e Londres.

      1.  As principais cidades europeias tinham locais de difusão de informações, tais como barbearias e tavernas, para homens, fontes publicas, para mulheres, e praças, para ambos os sexos. Mais tarde, os cafés surgiram e ganharam muita importância no processo. Mas gostaria de enfatizar o surgimento da comunicação clandestina e subversiva, com “grafiteiros” colocando nas paredes e monumentos palavras contra as instituições e lideres. Algo muito semelhante aos dias de hoje.
            2. O crescimento das grandes cidades europeias também fez crescer a confusão. Surge dai a necessidade de informação. Começam a proliferar guias para locomoção na cidade. Incialmente informando sobre atrações como igrejas, obras de arte, etc. Depois, sobre como negociar com condutores de cabriolés, ruas a serem evitadas à noite. Isso não só para visitantes, mas também para nativos, e sua demanda por informações sobre lazer e comércio. Destaco a criação, em Veneza, por volta de 1535, do Tariffa della Puttane, guia que continha atrações, críticas e preços de cerca de 110 cortesãs da cidade.
      3. As cidades também coletavam e distribuíam informações vindas de e sobre outros lugares. Informações estas que faziam subir ou descer preços de bens e ações. Surgem especuladores que espalhavam boatos com esse fim, num paralelo com o que é feito nos dias de hoje. Veneza era um centro de informações politicas importantes nessa época, com um sistema de Embaixadores Residentes, que coletavam informações relevantes para o Governo, fazendo relatórios que eram lidos em voz alta no Senado e depois guardados nos Arquivos Estatais. Posteriormente, esses relatórios poderiam ser comprados clandestinamente.
Veneza era a maior produtora de livros na Europa por volta de 1500, e por consequência grande difusora de informação. Ajudava o fato de ser uma cidade portuária e ligação entre oriente e ocidente. Muitos  estrangeiros viviam na cidade, e obras eram editadas em varias línguas. Isso até a Inquisição mudar esse quadro, forçando a publicação de textos devocionais em italiano, com a cidade ganhando ares provincianos, em contraste com o comportamento de metrópole que tinha até então.  Entra em cena Amsterdã. Pelo descobrimento do Novo Mundo, o eixo de gravidade se desloca para mais perto do Atlântico. A informação numa clara dependência das rotas comerciais. Isso faz com que, entre 1650 e 1700, Amsterdã se torne a maior produtora europeia de livros. Esta cidade foi o primeiro centro jornalístico da Europa Ocidental, e muito da sua riqueza dependia da venda de informações. 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Museu e Museologia, de Dominique Poulot

Apreciação do Capítulo IV, "Os museus da França"

O museu francês tem uma gênese caótica, com origens revolucionárias. Baseia-se no confisco de bens do clero, e depois, dos nobres emigrantes durante a Revolução, bem como nas antigas coleções reais e nas conquistas militares. A característica duradoura do museu francês é sua relação singular com o Estado.
Durante o Antigo Regime, um mecanismo institucional permitia aos artistas produzir e vender obras em um sistema amplamente controlado pela dinâmica das compras e das recompensas mais ou menos simbólicas. O Salon da Académie Royale de Peinture et de Sculpture tinha um papel central, fornecendo as informações necessárias a todos os participantes, aos artistas e a seu público. Esse modelo, a partir do Séc. XIX, entra em uma crise aberta. Esse monopólio de informação e exposição é combatido por marchands e artistas independentes. Estes criticam vigorosamente o sistema de compra de obras que ocorre nesse espaço, fato que culmina em um novo ideal de museu de arte contemporânea, configurado pelo Palais de Luxembourg (aberto em 1750, foi o primeiro museu francês franqueado ao público e dedicado à pintura; a partir de 1818, foi o primeiro espaço de arte contemporânea). Desmantelou-se, assim, um conjunto de instituições que durante dois séculos dirigiu o mundo das artes. No Séc. XX a tônica das relações do Estado com os museus foram as políticas de desenvolvimento cultural e no limiar do Séc. XXI uma nova definição do "musée de France" estabelece que é necessária uma hierarquia no conjunto relativamente indistinto dos estabelecimentos, além do implemento de uma apropriação das coleções pelas coletividades das diferentes regiões.
Voltando ao Salon, instituição bem anterior ao museu de arte na França, esse local era destinado a conferir uma "recompensa pública" aos artistas protegidos pelo Rei. Essa Academia tem um júri criado em 1748, formado exclusivamente por pintores de história no Salon, objetivando fomentar o bom gosto, para ilustrar a gloria do rei, e contra o "gênero".
Mas fazia-se necessária uma exposição de referência, para confrontar a produção contemporânea com exemplos canônicos do passado. A galeria aberta no Palais de Luxembourg, entre 1750-79, responde a essa exigência difusa de emulação, regida por modos de organização, preocupações pedagógicas e critérios estéticos inspirados em literatura e práticas acadêmicas. Em 1789, o Salon registra a primeira tentativa de iluminação zenital como uma experimentação museográfica. O projeto de instalar no futuro Muséum, com a coleção régia, as estátuas dos homens mais ilustres e as obras-primas patrocinadas pela monarquia, de alguma forma usaria a arte para defender a causa do rei diante da posteridade. A sobrecarga patriótica singular do museu francês, sua identificação contínua no Louvre satisfazem essa configuração inicial.
A Revolução traz consigo a afirmação dos direitos humanos e a legítima reivindicação ao acesso às obras de arte, em nome de uma fruição e um exercício dos talentos, algo há muito tempo obstruído. No vazio institucional gerado pela supressão da maior parte das escolas e associações, o museu faria o papel de livre e imediato transmissor do Belo, aqui visto como o fruto do colecionismo régio, e seus princípios, com todo o corpo social irrigado pela simples vista de modelos. Porém, os mais radicais revolucionários questionam severamente a legitimidade a utilidade de conservar um legado execrável.
O marchand  Le Brun destaca que "não se tratava de fazer quadros, nem de instruir alunos, e sim de criar condições de apreciar produções dos outros, distinguir diferentes mestres que, apesar de pertencerem à mesma escola, tinham caráter particular e original". Já o pintor David defende um museu verdadeiramente revolucionário: "O Muséum, de modo algum, é a fútil reunião de objetos de luxo ou frivolidade que apenas servem a satisfazer a curiosidade. Ele deve se tornar uma escola importante, onde professores primários levam seus alunos; onde o pai levará o filho". David pretendia converter o museu em uma instituição-chave do novo sistema de artes. Isso leva a uma ampliação do Salon, e a supressão do antigo júri traz tantas novas obras que reemerge o princípio de uma seleção prévia para descartar os trabalhos mais medíocres.
As vitórias dos exércitos revolucionários, enche esses museus com modelos de ciências e artes buscados nessas conquistas. Supostamente, o museu deve realizar a verdade da história, justificando todas as espoliações em nome da "glória" dos franceses, num ato simultaneamente politico e demonstrativo dos valores da civilização. Contrariamente, Quatremére de Quincy sustentava que "qualquer objeto deve ser (re)colocado em seu lugar para devolver-lhe sentido e legitimidade - no mínimo, para fortalecê-lo e enriquecê-lo". Essa devolução de objetos à sua origem impõe-se, a despeito do entusiasmo dos visitantes do Louvre. Durante a segunda Restauração (1814-1830) se iniciam as devoluções às potências estrangeiras e a pretensão de compensar perdas das obras-primas antigas ou oriundas do exterior mediante a valorização da Escola Francesa. O Museu do Luxemburgo, inaugurado em 1818, afirma que "tudo é nacional, tudo é moderno". Este museu, e posteriormente o Louvre, recolhe a arte contemporânea mostrada nos Salons, que entram em crise. Apesar do aumento de artistas expostos no Salon aumentar na primeira metade do Séc. XIX e artistas independentes juntarem-se ao júri acadêmico, a hegemonia deste em relação ao mundo da arte expõe-se a uma contestação organizada. Surgem exposições fora desse espaço, por iniciativa de mecenas, pintores, dando espaço, por exemplo, a artistas recusados. Os jornais e críticos fornecem ao público meios de julgar seu julgamento, o que gradativamente mina a importância do Estado no reconhecimento de uma carreira. Ganham força o marchand  e o crítico no âmbito da troca econômica. Nesse novo contexto, em 1882 é aberta a École du Louvre, como uma escola de administração de museus, recrutadora de conservadores, adjuntos e assessores. Rapidamente esta se torna uma escola de arqueologia e de história da arte. Nesse quadro torna-se forte a aliança do museu com a escola. Se as duas instituições contribuem diretamente para a formação de artistas e profissionais da arte, os museus devem também acompanhar uma pedagogia do olhar para todos os cidadãos.
No final do Séc. XIX é retomada a questão sobre as relações entre arte e Estado. No final da Primeira Guerra Mundial, novos interesses políticos respaldados na defesa e promoção da arte e cultura emergem. Iniciativas ambiciosas, mas desde logo interrompidas, ou nem germinadas. Mas aberturas exemplares mostram a relação contemporânea entre arte e coletividade pública. A criação do Palais de la Découverte, durante a Exposição Universal de 1937 - demonstrando a dinâmica da ciência, sendo assim uma resposta às demandas de um museu vivo). Depois da Guerra, a modernização sócio-econômica vê a arte contemporânea (pós década de 1960) tornar-se gradativamente uma questão pública. Segundo o historiador Georges Salles, no ato da inauguração do Musée National d'Art Moderne, em 1947, "hoje acaba a separação entre o Estado e o talento artístico".

terça-feira, 31 de março de 2015

Os Primórdios do Museu: Da Elaboração Primordial à Instituição Pública (excerto), de Ana Cláudia Fonseca Brefe

O historiador de arte francês Germain Bazin em seu clássico Les Temps des Musées indicou duas noções de temporalidade: a do tempo que escoa irremediável e a do tempo que dura. Duas atitudes opostas caracterizam isso: a projeção do futuro e, concomitantemente, a volta ao passado. O que faz com que "o homem se console com aquilo que ele é por aquilo que ele foi". Essa referência ao tempo é fundamental para se entender o Museu e suas relações com a sociedade, sobretudo nos dias atuais. Hoje observa-se uma terceira atitude em relação ao tempo, um "presente estendido", que se problematiza a si mesmo.
Hoje o museu não se pretende mais conservador de acontecimentos e personagens relevantes e sim como um lugar de pesquisa e difusão do patrimônio universal (arqueológico, histórico, artístico, etnográfico, biológico, natural, material, imaterial). O Museu "encapsula" o espaço e, principalmente, o tempo, pela exposição. Analisando memórias, pois elas compõem fundamentalmente a vida social.
O francês Dominique Poulot, também historiador, aponta três abordagens sucessivas que marcaram o estudo da articulação Sociedade-Instituições Culturais, entre elas o Museu. Uma delas, que Bazin defende, reza que as coleções públicas correspondem ao caráter das estruturas sociais que lhe deram origem. O progresso da instituição vem da evolução natural das sociedades. Outra perspectiva vê as instituições como instrumento de conflito de interesses, de classes, como um meio de manipulação para perpetuar um determinado modo de dominação. Essa é a perspectiva aberta pela Escola de Frankfurt. Já a Escola de Chicago abre uma terceira análise, que vê o Museu como um repertório de imagens acabadas que interagem com o público por trocas e interpretações diversas. Ocorre uma hermenêutica diacrônica (interpretação de sentido de palavras, leis, textos por sua evolução no tempo).
O Museu elabora, expõe, comunica e interpreta a cultura material. O estudo dos diferentes períodos pelos quais o Museu passou, que podem ser chamados de "Sistemas Museais", deve levar em conta uma análise política, ideológica e estrutural e, sobretudo, uma reflexão sobre as coleções e suas redes sociais. Poulot aborda as coleções confrontando duas análises: a formalista, que define a coleção teoricamente e consiste em aplicar fórmulas contemporâneas às sociedades passadas, como expertise, mercado, efeito de raridade. Já a análise substantiva rejeita isso, tomando o objeto como um dado objetivo universal. Para o historiador, essas análises "isolam" o fenômeno da coleção do tecido social onde ele se acha dissimulado ou pouco reconhecível.
A partir do Séc. XVII, aparece a ideia de Museu como espaço de exposição pública que reúne, dá visibilidade e permite acesso direto às obras, diferente da apreciação da biografia dos artistas em primeiro plano, como era habitual desde o Renascimento. Uma corrente de pensadores nos Sécs. XVII-XVIII atentou para a necessidade da abertura das coleções reais na França, como Diderot, que queria fazer do Museu do Louvre um espaço para essas exposições. Rapidamente as discussões passam da abertura, aquisição e encomenda de obras para problemas museográficos, como espaço de exposição, iluminação e segurança dos objetos expostos.
Os Museus originam-se diretamente dos Gabinetes de Curiosidades, prática que era moda entre camadas superiores da população européia entre os Sécs. XVI e XVIII. A Pintura e a Escultura eram as artes preferidas desses embriões de coleção museológica. Mas é a partir das coleções de história natural que inicia-se um movimento de classificação e ordenação de objetos, tentando compor uma ordem racional do mundo.

quinta-feira, 26 de março de 2015

História Antiga e o Antiquário, de Arnaldo Momigliano

No século XII, um novo humanismo surgia organizado em Sociedades Eruditas, em vez de centrar-se nas Universidades. Os nobres o promoviam, preferindo viajar a corrigir citações. Consideravam textos literários menos importantes que vasos, moedas e inscrições. Tinham a Itália como ponto de referência, com as antiguidades etruscas tão valorizadas quanto às ruínas romanas. Seria esta a imagem da Era dos Antiquários, como uma revolução do método histórico. Esse método funda-se na distinção entre autoridades originais (testemunhas oculares ou documentos contemporâneos dos eventos que atestam) e derivadas (historiadores e cronistas que relatam e discutem eventos que não testemunharam, mas ouviram falar ou inferiram das autoridades originais). Os Antiquários tiveram grande papel nesse novo método, mostrando como utilizar evidências não literárias e refletir sobre a dificuldade de coletar e interpretar fatos.
Antiquários estudam o passado sem serem historiadores, Historiadores escrevem cronologicamente, enquanto antiquários o fazem sistematicamente. Historiadores produzem fatos para ilustrar ou explicar determinada situação, enquanto antiquários coletam todos os itens relacionados a certo tema, ajudando eles ou não a resolver seu problema. Assuntos como política, religião e vida privada, são tradicionalmente considerados mais apropriados à descrição sistemática. Na Grécia do séc. V a.C., esses assuntos eram tratados como Arqueologia, assuntos esses que hoje consideramos de interesses Antiquário.
Importante notar que, no fim do séc. V a.C., a história política e a pesquisa erudita do passado tendiam a ser mantidas em compartimentos separados, fato que perdurou até o séc. XIX, e ainda hoje não desapareceu completamente.
Na Grécia helênica, a arqueologia perde o sentido amplo visto acima, passando a significar a história das origens ou a história arcaica, sendo essa tendência seguida pelos romanos. Na Idade Média, o interesse pelas inscrições e vestígios arqueológicos não se perdeu. Mas a ação do antiquário como amante, colecionador e estudante de tradições antigas e seus vestígios - não historiador - volta com força nos sécs. XV e XVI. Nos sécs. XVI e XVII antiquários passam a ser vistos por muitos autores como historiadores imperfeitos que recuperavam relíquias tão fragmentadamente que essas não podiam ser chamadas de história. Isso se aplicava à historia de Grécia e Roma, ao mundo clássico. Antiquários eram aceitos nos estudos referentes ao mundo não clássico.
Isso na segunda metade do séc. XVII começa a desaparecer. Vestígios arqueológicos, seleção do que é confiável em fontes antigas e interpretação moral e política de evidências antigas passam a ser utilizadas. Os antiquários tornaram aparente a necessidade de novas histórias ao coletarem suas evidências fora das fontes literárias.
Controvérsia: o séc. XVII trouxe disputas religiosas e políticas que invadiram a história, desacreditando o historiador. Catedráticos e até estudiosos de outras áreas julgavam documentos e evidências como diplomas, moedas mais confiáveis que fontes literárias. Já os historiadores valiam-se da "boa-fé" para análise dessas fontes.
Os pirronistas (filosofia que tem como premissa duvidar de tudo) não tardaram a questionar até as evidências arqueológicas. Punham em dúvida a interpretação das mesmas, influenciadas por filosofias e posicionamentos diversos. Mas estes falharam em causar essa impressão em muitos eruditos. É importante aqui salientar que interpretações de vasos, estátuas, relevos e pedras são muito mais imprecisos, sujeitos à crença, filosofia dos autores do que a análise de moedas, epigrafias etc.
No séc. XVIII, historiadores "filosóficos", como Voltaire e Montesquieu, abordavam a história sob a óptica da noção de utilização, e a história política subordinou-se a ela. Temas caros ao antiquário, como religião, costumes e comércio, tornaram-se assuntos dos historiadores filosóficos, esses sem darem tanta importância à discussão sobre fontes.
No séc. XIX a combinação de história filosófica e método de pesquisa antiquário tornou-se o objetivo dos melhores historiadores - e ainda hoje isso é buscado. Para isso, implica-se suprimir constantemente o impulso de julgar a priori, que é intrínseco à abordagem generalizante do historiador filosófico, bem como evitar o apreço pela classificação e pelos detalhes às vezes irrelevantes do antiquário.

domingo, 22 de março de 2015

Coleção, de Krzysztof Pomian

Museu é uma coleção, ou seja, qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito de atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num lugar pronto a esse fim, e expostos aos olhos do público.
Arquivo é uma instituição destinada a pôr em segurança, recolher, classificar, conservar, guardar e tornar acessíveis documentos que, tendo perdido sua antiga utilidade cotidiana e por isso considerados supérfluos nas repartições, mereçam ser guardados.
Já as Bibliotecas têm uma definição mais complicada. Livros tratados enquanto objetos, com belas encadernações, capas artísticas, conferem a estas bibliotecas status de coleção. Ou as bibliotecas desempenham função de arquivo, ou têm apenas obras de entretenimento. Estes casos são diferentes de bibliotecas que recolhem livros onde se extraem informações de atividades econômicas, que não podem ser assimiladas às coleções. Os objetos de coleção tem valor de TROCA, sem valor de USO.

Pomian fala em Coleção de Coleções, citando o Mobiliário Funerário, tumbas com objetos que pertenciam aos mortos, depois substituídos por modelos, mais difíceis de executar e mais caros. As Oferendas, objetos ofertados aos deuses em templos de Musas (como o Museu de Alexandria). Objetos tornam-se sacros. Sobre Presentes e Despojos, Pomian diz que os detentores do poder recebiam presentes de embaixadores, por exemplo, os quais eram mostrados em festas aos cortesãos. Em Roma, o general que voltava de uma campanha vitoriosa tinha o privilégio de mostrar as riquezas conquistadas. As Relíquias e Objetos Sagrados, devido ao Cristianismo, o culto aos Santos, levou a valorização dos objetos sacralizados ao apogeu. Já os Tesouros Principescos vem a ser a acumulação de objetos do cotidiano (talheres, por exemplo) mas de metais preciosos. Provavelmente não para uso, pela grande quantidade, mas para exibição em momentos solenes. Todas essas coleções diferem-se umas das outras e também do conceito de Coleção contemporâneo.
O autor também cita o visível e o invisível como características importantes das Coleções. O mobiliário e oferendas aos mortos SÃO coleções, visíveis aos mortos e deuses. Relíquias representam o passado e mais o sagrado, por simples contato com santos ou de serem partes de seus corpos. Objetos só asseguram a condição de comunicadores entre os mundos dos mortos e vivos se expostos. O invisível está muito longe no tempo, muito alto ou baixo. Além de espaço físico, na Eternidade.
Os modos de transmissão de mensagens ao invisível são variados: sacrifícios, oferendas, rezas, etc. Enquanto os fenômenos de representação do invisível se dão por meio de aparições celestes, meteoros, plantas sagradas, animais (como as vacas na Índia), entre outros. E é a linguagem que dá origem ao invisível. Permite falar dos mortos como vivos, do passado como presente. A produção de elementos que representam o invisível surge com a emergência da cultura.
Dentro do visível, COISAS são usadas e, por consequência, consomem-se. E os objetos tornam-se SEMIÓFOROS quando perdem a utilidade no sentido acima, mas são dotadas de um novo significado, que se desvela quando expostos ao olhar.

Breviário de um Museu Mutante e Da coleção impossível ao espólio indesejado: memórias ocultas do Museu Julio de Castilhos, de Letícia Borges Nedel, Universidade de Brasília – Brasil

O perfil do Museu Julio de Castilhos é forjado na era dos "museus nacionais". O patrimônio dos povos e coleções sendo disputados pelos Estados, diferenciando-se dos "gabinetes de curiosidades"da nobreza.
O MJC inicia ligado ao espólio da Exposição Agropecuária de 1901, numa época de de exposições universais pelo mundo. O Governador Julio de Castilhos propôs a criação de um museu a partir da reunião de exemplares de minerais da Exposição Agropecuária, realizada nos campos da Redenção (POA). Nos primeiros tempos do museu, esse tinha um caráter enciclopédico, e a partir da década de 1950, passa a priorizar o folclore e tradições pátrias e, sobretudo, rio-grandenses.
O advento do MJC é posterior a duas tentativas de criação de museus provinciais, um Instituto de Historia e Geografia e um arquivo, durante o Império. Só durante a República foi superada a ausência de órgãos para guardar a memória da república . Com o Arquivo Publico, que desde o início servia à pesquisa histórica. Já o MJC era um lugar de memória, de heróificação de vultos republicanos. Em seu início era fechado à visitações, somente recebendo pesquisadores estrangeiros, sem contemplar funções museológicas. Armazenava então presentes recebidos ou produzidos pelo Executivo estadual, sem tratamento cronológico ou temático dos objetos expostos. Com uma orientação positivista, o museu tinha três seções voltadas para ciências físicas e biológicas e somente uma para ciências, artes e documentação, mostrando o papel indefinido da História. Isso perdurou até a década de 1920.
Ocorreu em 1925 uma guinada em direção ao novo formato do MJC, com a incorporação da seção histórica do Arq. Público e parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do RS. Todos os órgãos se fundem, com diretores circulando entre estes. Em 1943 o regulamento do MJC é adequado às funções que exercia desde 1925. Sua função museológica é de "catalogar, colecionar e expor, sistematicamente, documentos históricos e geográficos, relíquias históricas, arqueológicas e artísticas do Brasil e especialmente do Rio Grande do Sul". Durante o Estado Novo, a política de atuação volta-se ao público, com preocupação pedagógica e consequente visita de escolas.
Na década de 60 verifica-se a tendência de diversificação de acervos nos museus, devido aos genocídios praticados durante a WWII em nome das Nações. Começa um processo de destituição de heróis políticos do papel ordenador da história social. Na década de 70, chegam a especialização e diversificação,  palavras de ordem nos debates sobre políticas de preservação, aquisição e curadoria.
A Lei nº 2.345, promulgada em janeiro de 1954, obriga os museus a determinar áreas de interesse. Então, o acervo do MJC é dividido entre MARGS, Zoológico e Arquivo Histórico. A pesquisa e divulgação do Folclore aparece entre as atividades do Museu. O intelectual Dante de Laytano, à frente do Museu, divulgava um RS cheio de particularidades em relação ao Brasil, mas parte do "mundo português". Cria seção açoriana, busca itens originais das ilha, mas o custo financeiro dificulta o projeto. Este mal visto por conservadores, por presenças étnicas "indesejáveis".
A confusão entre "tradição" e "folclore" minou a legitimidade da ascendência açoriana pretendida por Laytano, barrando a entrada do folclore no MJC. Isso passa às mãos dos CTG's.