quarta-feira, 8 de abril de 2015

Museu e Museologia, de Dominique Poulot

Apreciação do Capítulo IV, "Os museus da França"

O museu francês tem uma gênese caótica, com origens revolucionárias. Baseia-se no confisco de bens do clero, e depois, dos nobres emigrantes durante a Revolução, bem como nas antigas coleções reais e nas conquistas militares. A característica duradoura do museu francês é sua relação singular com o Estado.
Durante o Antigo Regime, um mecanismo institucional permitia aos artistas produzir e vender obras em um sistema amplamente controlado pela dinâmica das compras e das recompensas mais ou menos simbólicas. O Salon da Académie Royale de Peinture et de Sculpture tinha um papel central, fornecendo as informações necessárias a todos os participantes, aos artistas e a seu público. Esse modelo, a partir do Séc. XIX, entra em uma crise aberta. Esse monopólio de informação e exposição é combatido por marchands e artistas independentes. Estes criticam vigorosamente o sistema de compra de obras que ocorre nesse espaço, fato que culmina em um novo ideal de museu de arte contemporânea, configurado pelo Palais de Luxembourg (aberto em 1750, foi o primeiro museu francês franqueado ao público e dedicado à pintura; a partir de 1818, foi o primeiro espaço de arte contemporânea). Desmantelou-se, assim, um conjunto de instituições que durante dois séculos dirigiu o mundo das artes. No Séc. XX a tônica das relações do Estado com os museus foram as políticas de desenvolvimento cultural e no limiar do Séc. XXI uma nova definição do "musée de France" estabelece que é necessária uma hierarquia no conjunto relativamente indistinto dos estabelecimentos, além do implemento de uma apropriação das coleções pelas coletividades das diferentes regiões.
Voltando ao Salon, instituição bem anterior ao museu de arte na França, esse local era destinado a conferir uma "recompensa pública" aos artistas protegidos pelo Rei. Essa Academia tem um júri criado em 1748, formado exclusivamente por pintores de história no Salon, objetivando fomentar o bom gosto, para ilustrar a gloria do rei, e contra o "gênero".
Mas fazia-se necessária uma exposição de referência, para confrontar a produção contemporânea com exemplos canônicos do passado. A galeria aberta no Palais de Luxembourg, entre 1750-79, responde a essa exigência difusa de emulação, regida por modos de organização, preocupações pedagógicas e critérios estéticos inspirados em literatura e práticas acadêmicas. Em 1789, o Salon registra a primeira tentativa de iluminação zenital como uma experimentação museográfica. O projeto de instalar no futuro Muséum, com a coleção régia, as estátuas dos homens mais ilustres e as obras-primas patrocinadas pela monarquia, de alguma forma usaria a arte para defender a causa do rei diante da posteridade. A sobrecarga patriótica singular do museu francês, sua identificação contínua no Louvre satisfazem essa configuração inicial.
A Revolução traz consigo a afirmação dos direitos humanos e a legítima reivindicação ao acesso às obras de arte, em nome de uma fruição e um exercício dos talentos, algo há muito tempo obstruído. No vazio institucional gerado pela supressão da maior parte das escolas e associações, o museu faria o papel de livre e imediato transmissor do Belo, aqui visto como o fruto do colecionismo régio, e seus princípios, com todo o corpo social irrigado pela simples vista de modelos. Porém, os mais radicais revolucionários questionam severamente a legitimidade a utilidade de conservar um legado execrável.
O marchand  Le Brun destaca que "não se tratava de fazer quadros, nem de instruir alunos, e sim de criar condições de apreciar produções dos outros, distinguir diferentes mestres que, apesar de pertencerem à mesma escola, tinham caráter particular e original". Já o pintor David defende um museu verdadeiramente revolucionário: "O Muséum, de modo algum, é a fútil reunião de objetos de luxo ou frivolidade que apenas servem a satisfazer a curiosidade. Ele deve se tornar uma escola importante, onde professores primários levam seus alunos; onde o pai levará o filho". David pretendia converter o museu em uma instituição-chave do novo sistema de artes. Isso leva a uma ampliação do Salon, e a supressão do antigo júri traz tantas novas obras que reemerge o princípio de uma seleção prévia para descartar os trabalhos mais medíocres.
As vitórias dos exércitos revolucionários, enche esses museus com modelos de ciências e artes buscados nessas conquistas. Supostamente, o museu deve realizar a verdade da história, justificando todas as espoliações em nome da "glória" dos franceses, num ato simultaneamente politico e demonstrativo dos valores da civilização. Contrariamente, Quatremére de Quincy sustentava que "qualquer objeto deve ser (re)colocado em seu lugar para devolver-lhe sentido e legitimidade - no mínimo, para fortalecê-lo e enriquecê-lo". Essa devolução de objetos à sua origem impõe-se, a despeito do entusiasmo dos visitantes do Louvre. Durante a segunda Restauração (1814-1830) se iniciam as devoluções às potências estrangeiras e a pretensão de compensar perdas das obras-primas antigas ou oriundas do exterior mediante a valorização da Escola Francesa. O Museu do Luxemburgo, inaugurado em 1818, afirma que "tudo é nacional, tudo é moderno". Este museu, e posteriormente o Louvre, recolhe a arte contemporânea mostrada nos Salons, que entram em crise. Apesar do aumento de artistas expostos no Salon aumentar na primeira metade do Séc. XIX e artistas independentes juntarem-se ao júri acadêmico, a hegemonia deste em relação ao mundo da arte expõe-se a uma contestação organizada. Surgem exposições fora desse espaço, por iniciativa de mecenas, pintores, dando espaço, por exemplo, a artistas recusados. Os jornais e críticos fornecem ao público meios de julgar seu julgamento, o que gradativamente mina a importância do Estado no reconhecimento de uma carreira. Ganham força o marchand  e o crítico no âmbito da troca econômica. Nesse novo contexto, em 1882 é aberta a École du Louvre, como uma escola de administração de museus, recrutadora de conservadores, adjuntos e assessores. Rapidamente esta se torna uma escola de arqueologia e de história da arte. Nesse quadro torna-se forte a aliança do museu com a escola. Se as duas instituições contribuem diretamente para a formação de artistas e profissionais da arte, os museus devem também acompanhar uma pedagogia do olhar para todos os cidadãos.
No final do Séc. XIX é retomada a questão sobre as relações entre arte e Estado. No final da Primeira Guerra Mundial, novos interesses políticos respaldados na defesa e promoção da arte e cultura emergem. Iniciativas ambiciosas, mas desde logo interrompidas, ou nem germinadas. Mas aberturas exemplares mostram a relação contemporânea entre arte e coletividade pública. A criação do Palais de la Découverte, durante a Exposição Universal de 1937 - demonstrando a dinâmica da ciência, sendo assim uma resposta às demandas de um museu vivo). Depois da Guerra, a modernização sócio-econômica vê a arte contemporânea (pós década de 1960) tornar-se gradativamente uma questão pública. Segundo o historiador Georges Salles, no ato da inauguração do Musée National d'Art Moderne, em 1947, "hoje acaba a separação entre o Estado e o talento artístico".

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